As Crianças de Minneapolis São Mártires?
Em meio ao luto e à dor que se seguiram ao terrível tiroteio na Paróquia da Anunciação pelas Crianças de Minneapolis, uma questão profunda e complexa começou a ecoar na comunidade católica: as duas crianças que perderam a vida, Harper Moyski, de 10 anos, e Fletcher Merkel, de 8, podem ser consideradas mártires da fé?

A tragédia, que ceifou vidas inocentes durante a celebração de uma missa, traça um paralelo sombrio com momentos históricos da Igreja, como os assassinatos de São Óscar Romero e São Tomás Becket, ambos mortos em locais sagrados. Contudo, a resposta para essa pergunta não é simples. Ela se encontra na intersecção entre os fatos ainda nebulosos do ataque, a complexa psicologia do atirador e a própria evolução do conceito de martírio dentro da tradição católica.
O que Define um Mártir?
O Catecismo da Igreja Católica é claro ao definir o martírio como “o testemunho supremo dado à verdade da fé”, um ato que significa “dar testemunho até à morte”. Historicamente, a Igreja estabeleceu critérios rigorosos para essa designação. Os padrões atuais, consolidados ao longo de séculos, exigem três elementos centrais:
- Morte Violenta: A vítima deve ter sido morta de forma violenta.
- In Odium Fidei (Em Ódio à Fé): O agressor deve ter agido motivado pelo ódio à fé católica.
- Aceitação Voluntária: A vítima deve ter aceitado a morte, mesmo que implicitamente, como um testemunho de sua fé.
Uma declaração formal de martírio pela Igreja é um passo de imenso significado, pois qualifica a pessoa para a beatificação sem a necessidade de um milagre comprovado, um requisito padrão no processo de canonização.
O Dilema de Minneapolis: Ódio à Fé ou Violência Niilista?

No caso de Harper e Fletcher, o primeiro critério — a morte violenta — é inquestionável. A complexidade surge ao analisar a motivação do atirador, Robert (Robin) Westman. As investigações revelaram um manifesto e vídeos repletos de ódio, não apenas contra católicos, mas contra uma vasta gama de grupos, incluindo judeus, negros e figuras políticas. Westman, que frequentou a escola da paróquia, demonstrou um fascínio doentio por tiroteios em massa e um desejo explícito de “ver crianças sofrerem”.
Essa mistura de motivações levanta um debate crucial entre teólogos e historiadores. Alguns, como o professor John Dempsey, veem o ato mais como “violência niilista” de uma mente perturbada do que como uma perseguição religiosa direcionada. “É um amontoado de bobagens”, disse ele sobre o manifesto, sugerindo que o atirador atacou o que lhe era familiar, sem um ódio puro e singular à fé.
Outros, no entanto, argumentam que as circunstâncias falam por si. O professor Anthony Clark, especialista em martírio católico, defende que atirar contra crianças dentro de uma igreja durante a missa é uma evidência poderosa de odium fidei. “Seria fácil argumentar que alguém que atirou em uma igreja para massacrar crianças dessa fé certamente agiu em ódio à fé”, afirma Clark. Para ele, ao morrerem dessa forma, as crianças se tornaram, sim, testemunhas.
A questão da “aceitação voluntária” é ainda mais delicada. As crianças não tiveram a chance de escolher entre a vida e a fé, como mártires clássicos. Elas estavam simplesmente participando de um rito sagrado, sem qualquer suspeita do perigo iminente.
A Expansão do Conceito: Dos Santos Inocentes à Família Ulma
A tradição da Igreja, no entanto, oferece precedentes que ampliam a compreensão do martírio para além de uma escolha consciente. O exemplo mais antigo é a festa dos Santos Inocentes, celebrada em 28 de dezembro. A Igreja venera como mártires os meninos massacrados pelo Rei Herodes em sua tentativa de matar o Menino Jesus. Essas crianças não eram cristãs e não tiveram escolha, mas foram mortas por causa de Cristo.
Mais recentemente, a beatificação da família Ulma na Polônia, em 2023, expandiu ainda mais essa compreensão. Józef e Wiktoria Ulma, juntamente com seus sete filhos (incluindo um bebê não nascido), foram executados por nazistas por abrigarem judeus. O Vaticano declarou que as crianças, embora incapazes de um ato de fé consciente, foram incluídas no martírio de seus pais. O bebê, que não recebeu o batismo com água, foi considerado um mártir pelo “batismo de sangue”, imerso no sacrifício de sua mãe.
Esses casos demonstram que a Igreja reconhece que a graça de Deus pode santificar pessoas mesmo sem sua cooperação ativa. O padre jesuíta Peter Nguyen traça um paralelo direto: “Você pode conectar essas crianças em Minnesota com os Santos Inocentes, assim como com a família polonesa Ulma, porque a tradição da Igreja deu espaço para a graça de Deus”.
Uma Decisão da Igreja sobre as Crianças de Minneapolis, Uma Reflexão para os Fiéis
No final, a decisão de declarar Harper Moyski e Fletcher Merkel como mártires pertence exclusivamente à Igreja, um processo que envolve oração, investigação e profundo discernimento. Especialistas como Robert Royal, autor de livros sobre o martírio no século XX, concordam que, embora o caso seja complexo, ele se encaixa em uma tendência de flexibilização da definição, como visto nos casos de Santa Edith Stein e outros “mártires da justiça”.
Independentemente da designação formal, a morte trágica dessas crianças durante o ato mais sagrado da fé católica as coloca em um lugar especial no coração dos fiéis. Elas se tornaram um símbolo doloroso da vulnerabilidade dos espaços sagrados em uma cultura conturbada e da necessidade urgente de proteger os fiéis. Enquanto a Igreja pondera sobre a teologia, a comunidade lamenta a perda de duas almas jovens, cuja presença na missa naquela manhã já era, em si, um testemunho silencioso de fé.
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