A Autoridade da Bíblia e da Igreja Católica: Escritura na Tradição, não contra a Tradição
Para muitos cristãos formados no ambiente protestante, a fé católica parece colocar “Bíblia” e “Tradição” em polos opostos. Contudo, a própria Igreja Catolica declara que a única Palavra de Deus chega a nós por dois modos inseparáveis: a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição, ambas confiadas ao Magistério para custódia e interpretação autêntica (cf. Dei Verbum 9–10; Catecismo da Igreja Católica [CIC] 80–82, 85–87). Este artigo aprofunda, em base bíblica, histórica e patrística, por que a autoridade católica é intrinsecamente bíblica e como a Escritura, lida na Tradição viva, é preservada da fragmentação interpretativa.
“Eu não creria no Evangelho, se não me movesse a isso a autoridade da Igreja Católica.” — Santo Agostinho, Contra epistulam Manichaei 5,6.
1) O que a Igreja Católica realmente ensina sobre autoridade
A Igreja não afirma duas “revelações” paralelas. Ensina que há uma única Revelação (Cristo), transmitida por escrito (Escritura) e oralmente (Tradição), e que o Magistério vivo (Papa e Bispos em comunhão) serve, não para “acrescentar” doutrina, mas para guardar, explicar fielmente e discernir o depósito apostólico (cf. CIC 84–87).
- Escritura: inspirada por Deus (2Tm 3,16–17), norma normans da fé.
- Tradição: vida da Igreja que transmite, desde os Apóstolos, aquilo que nem sempre está explicitado por escrito, mas pertence à fé (2Ts 2,15; 1Cor 11,2; 2Tm 2,2).
- Magistério: garante e interpreta autenticamente (Jo 16,13; Lc 10,16; At 15,28), impedindo leituras contraditórias.
Esse tríplice vínculo evita a alternativa falsa “Bíblia ou Tradição” e afirma a sinfonia “Bíblia na Tradição”.
2) A Escritura aponta para uma autoridade visível e contínua

Quando Jesus confia a Pedro as chaves do Reino (Mt 16,18–19) e confirma o munus de apascentar (Jo 21,15–17), ele está instituindo um ministério visível. O próprio Novo Testamento mostra decisões colegiais que vinculam a Igreja:
- Concílio de Jerusalém (At 15): “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…” (At 15,28) — linguagem de autoridade conciliar.
- Autoridade que representa Cristo: “Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos rejeita, a mim rejeita” (Lc 10,16).
- Coluna e sustentáculo da verdade: não é um livro isolado, mas a Igreja (1Tm 3,15).
Já no século I, a Igreja intervém para preservar a unidade e a reta doutrina (cf. as Cartas Pastorais). A autoridade é apostólica na origem e episcopal na continuidade, via sucessão apostólica (cf. At 1,20–26; 2Tm 1,6).
3) “Sola Scriptura”? Distinções necessárias
Ex-protestantes estudiosos conhecem a diversidade interna do princípio Sola Scriptura. Algumas correntes admitem a chamada suficiência material (a Escritura contém materialmente toda a verdade salvífica), mas negam a suficiência formal (não garante, por si só, quem interpreta com autoridade). A posição católica dialoga com esse ponto:
- 2Tm 3,16–17 afirma a inspirabilidade e a utilidade da Escritura, não a exclusão da Tradição. O texto não diz “somente a Escritura”.
- A “Palavra de Deus” na Bíblia inclui pregação oral (1Ts 2,13) e ensinamento vivo (2Ts 2,15).
- A própria composição do cânon requer uma autoridade externa à Escritura (ver seção seguinte).
Objeções usuais:
- Ap 22,18–19 (“nada acrescentar”) refere-se ao livro do Apocalipse, não a um princípio que invalidaria a tradição apostólica;
- Mc 7,8 condena “tradições humanas” que contradizem o mandamento de Deus, não a Tradição apostólica;
- At 17,11 (bereanos) louva o exame das Escrituras, mas no contexto da pregação apostólica; eles não eram “sola scripturistas” contra a Igreja nascente.
Conclusão: o testemunho bíblico exige uma instância interpretativa e uma comunhão visível, não individualismo hermenêutico (2Pd 1,20; 3,16).
4) Quem definiu a Bíblia? O processo do cânon

A Escritura não traz uma lista de seus próprios livros. Nos primeiros séculos, circulavam evangelhos, cartas e apocalipses ortodoxos e apócrifos. A Igreja discerneu, na liturgia e na vida das comunidades, quais textos eram lidos como inspirados. Alguns marcos históricos:
- Séc. II: Fragmento Muratoriano (c. 170) lista a maioria dos livros do NT, mas diverge sobre alguns.
- Eusébio de Cesareia († c. 339) distingue livros “homologoumena” (reconhecidos por todos) e “antilegomena” (disputados).
- Carta Festal 39 de Atanásio (367) apresenta a primeira lista exata dos 27 livros do NT como hoje;
- Concílios regionais: Hipona (393) e Cartago (397; 419) confirmam cânon AT + NT que os católicos usam (incluindo os deuterocanônicos).
- Roma (382), sob o Papa Dâmaso, e mais tarde o Decretum Gelasianum reforçam esse cânon;
- Diante de rejeições reformadas a livros do AT, o Concílio de Trento (1546) define solenemente o cânon recebido.
Questões específicas do AT: a Igreja antiga rezava com a Septuaginta (LXX), tradução grega usada por Cristo e pelos Apóstolos, que inclui os deuterocanônicos. Jerônimo pessoalmente preferiu o hebraico, mas submeteu-se à Igreja e traduziu tudo na Vulgata. Agostinho defendeu a recepção eclesial da LXX.
Ponto decisivo: sem a Igreja, não há cânon certo. Portanto, apelar à Bíblia contra a autoridade eclesial implica usar um fruto que a própria Igreja discerniu.
5) A sucessão apostólica e o testemunho patrístico

Os Padres da Igreja são decisivos para quem vem do meio reformado, pois testemunham a fé dos primeiros séculos.
- Santo Inácio de Antioquia († c. 110): “Segui todos o bispo, como Jesus Cristo ao Pai; e o presbitério, como aos apóstolos; e reverenciai os diáconos…” (Carta aos Esmirnenses 8,1).
- Santo Irineu de Lião († c. 202): “É com essa Igreja [de Roma], por causa de sua mais poderosa principalidade, que deve necessariamente concordar toda Igreja…” (Contra as Heresias III,3,2).
- São Basílio Magno († 379): “De muitos dogmas e ensinamentos guardados na Igreja, uns recebemos por escrito, outros pela tradição dos apóstolos transmitida em mistério” (De Spiritu Sancto 27,66).
- Santo Agostinho († 430): “Eu não creria no Evangelho senão movido pela autoridade da Igreja Católica” (Contra ep. Manichaei 5,6).
- Vincent de Lérins (séc. V): regra da catolicidade — “o que foi crido em toda parte, sempre e por todos” (Commonitorium 2,5–6).
A regula fidei (regra de fé) funcionava como critério hermenêutico: a Escritura é lida na comunhão com as Igrejas apostólicas e sua liturgia, não em isolamento privado.
6) Como funciona o Magistério: níveis e finalidade

O Magistério pode ensinar de modo solene (Concílios ecumênicos; definições ex cathedra) ou de modo ordinário e universal (quando os bispos, em comunhão, ensinam de forma constante algo a ser definitivamente mantido). Sua infalibilidade não é onipresença de respostas, mas assistência negativa do Espírito para preservar de erro em matéria de fé e moral (cf. Lc 22,32; Jo 16,13).
Exemplos históricos:
- Niceia (325) definiu a consubstancialidade do Filho com o Pai (homoousios).
- Calcedônia (451) articulou a união das duas naturezas de Cristo.
- Trento (séc. XVI) respondeu a debates sobre justificação, sacramentos e cânon.
- Vaticano I (1870) precisou o primado e a infalibilidade papal em condições estritas.
- Vaticano II (1962–65), em Dei Verbum, descreveu a mútua relação entre Escritura, Tradição e Magistério.
Finalidade: servir à Palavra, custodiando o depósito (1Tm 6,20; 2Tm 1,14) e promovendo a unidade na verdade (Ef 4,11–16).
7) A Tradição viva em ação: exemplos concretos dos primeiros séculos
Para alguém que vem do Sola Scriptura, é crucial ver práticas unânimes entre cristãos antigos que não dependem de uma prova “capítulo-e-versículo”, mas estão enraizadas na fé apostólica.
a) Domingo como dia de culto
- A Bíblia não ordena explicitamente trocar o sábado pelo domingo; todavia, os cristãos se reúnem “no primeiro dia da semana” (At 20,7; 1Cor 16,2), em memória da Ressurreição.
- São Justino Mártir († c. 165) descreve a liturgia dominical: leituras dos “memoriais dos apóstolos” e dos profetas, homilia, orações, ósculo da paz, apresentação dos dons, ação de graças e comunhão (1ª Apologia 67).
b) Batismo infantil e regeneração batismal
- Jo 3,5 (“nascer da água e do Espírito”); Tt 3,5 (lavacro da regeneração).
- Orígenes († c. 254): prática “segundo a tradição apostólica” do batismo de crianças (Comentário a Romanos 5,9).
- São Cipriano de Cartago († 258): recomenda batizar sem demora os recém-nascidos (Carta 64).
c) Eucaristia como presença real
- Jo 6; 1Cor 10–11; relatos da instituição (Mt 26; Mc 14; Lc 22).
- Santo Inácio de Antioquia chama a Eucaristia “remédio de imortalidade” (Carta aos Efésios 20) e reprova os que “se abstêm da Eucaristia porque não confessam que ela é a carne de nosso Salvador” (Smyrn. 7).
- Santo Irineu: “O pão… torna-se Eucaristia do corpo de Cristo e o cálice… do seu sangue” (Adv. Haer. IV,18,5).
d) Trindade e terminologia doutrinária
- A fórmula trinitária explícita (“uma substância, três pessoas”) não está em uma única linha bíblica; é síntese da fé bíblica elaborada pela Igreja.
- Niceia e Constantinopla articularam a linguagem, preservando a verdade das Escrituras.
Esses exemplos mostram Tradição viva: a Igreja explicita o que está implícito na Escritura e disciplina a vida de fé.
8) Unidade católica e o problema da fragmentação
Sem um princípio visível de unidade, a interpretação bíblica tende à pulverização. Já no NT, Pedro reconhece que alguns “distorcem” as cartas de Paulo “para sua própria perdição” (2Pd 3,16). A história pós-Reforma exibe múltiplas confissões, muitas vezes incompatíveis entre si sobre temas essenciais (batismo, ceia, predestinação, segurança eterna, governo eclesial).
A unidade católica não é uniformidade cultural, mas comunhão doutrinal. O fiel que viaja de Recife a Manila ou Cracóvia confessa a mesma fé, celebra a mesma Eucaristia e reconhece a mesma autoridade.
A Dimensão da Tradição na Interpretação Bíblica
Um dos pontos de maior tensão no diálogo entre católicos e protestantes é a questão da interpretação das Escrituras. O princípio da Sola Scriptura confere ao indivíduo a liberdade — e também a responsabilidade — de interpretar a Bíblia por si mesmo, com a orientação do Espírito Santo. Já a Igreja Católica sustenta que o mesmo Espírito Santo que inspirou as Escrituras continua a guiar a comunidade eclesial, assegurando a fidelidade de sua interpretação ao longo da história.
O Concílio Vaticano II, no documento Dei Verbum (n. 10), é claro:
“A tarefa de interpretar autenticamente a palavra de Deus, escrita ou transmitida, foi confiada unicamente ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo.”
Isso não significa que o fiel leigo não possa ler e meditar a Escritura, mas que sua leitura se dá em comunhão com a Igreja, evitando interpretações privadas que possam se afastar da verdade revelada.
Esse ponto é crucial para ex-protestantes, pois muitos deles estão acostumados a estudar a Bíblia com profundidade e até em línguas originais (hebraico e grego). No entanto, a questão não é apenas de conhecimento técnico, mas de fidelidade à Tradição viva. Foi essa Tradição, guiada pelo Espírito Santo, que reconheceu o cânon bíblico e protegeu a integridade da fé.
O Papel dos Pais da Igreja

A história mostra que desde os primeiros séculos a Igreja viveu a fé em um dinamismo entre Escritura e Tradição. Padres como Santo Irineu de Lião (séc. II) insistiam que a verdade só poderia ser preservada na sucessão apostólica. Em sua obra Contra as Heresias (III, 3,1), ele escreve:
“É necessário obedecer àqueles que estão nas Igrejas, aos presbíteros que têm a sucessão dos Apóstolos; eles com a sucessão no episcopado receberam o dom certo da verdade, segundo o beneplácito do Pai.”
Irineu combateu as heresias gnósticas, que alegavam possuir revelações secretas ou interpretações privadas das Escrituras. Sua resposta mostra que desde cedo a Igreja via no Magistério e na sucessão apostólica a garantia de fidelidade à verdade.
Outro exemplo é Santo Agostinho, que viveu no século IV. Em Contra a Carta de Mani, ele afirma:
“Eu não acreditaria no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja Católica.”
Essa frase é emblemática porque mostra que a própria credibilidade da Bíblia está enraizada no testemunho da Igreja.
A Tradição como Vivência da Fé
É importante ressaltar que Tradição não é apenas um conjunto de ensinamentos preservados como relíquias, mas é a vida da Igreja. Isso inclui a liturgia, os sacramentos, a oração e a catequese. Um ex-protestante, ao se abrir para a Tradição, não apenas entende intelectualmente a fé católica, mas também a experimenta na vivência concreta.
A celebração da Eucaristia, por exemplo, é um ponto essencial. Já no século I, temos o testemunho de São Justino Mártir (c. 150 d.C.), descrevendo a celebração dominical da Missa em sua Primeira Apologia:
“No dia chamado domingo, todos, tanto os que vivem nas cidades como os que vivem nos campos, se reúnem em um mesmo lugar… Então é trazido pão e vinho misturado com água, e o presidente oferece orações e ações de graças conforme sua capacidade, e o povo responde com o amém.”
Esse testemunho mostra que a Tradição litúrgica remonta aos próprios Apóstolos e não é uma invenção posterior.
Conclusão: Uma Fé Encarnada na História
Para ex-protestantes que buscam compreender a fé católica, é essencial perceber que a Igreja não contrapõe Escritura e Tradição, mas as une em um único movimento do Espírito Santo. A Bíblia nasceu da Tradição, e a Tradição garante sua interpretação fiel. O Magistério, longe de ser uma imposição autoritária, é o serviço da Igreja à verdade revelada.
Assim, compreender a relação entre Escritura e Tradição é mais do que um exercício intelectual: é entrar na lógica da Encarnação, onde a Palavra eterna de Deus se fez carne em Jesus Cristo e continua a se fazer vida na Igreja.
Dessa forma, o católico não lê a Bíblia isoladamente, mas em comunhão com os santos de todos os tempos, vivendo a mesma fé transmitida de geração em geração.
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